Bruce Alexander debate drogas e dependências em seminário internacional

 

O Seminário Internacional 'Drogas e Dependências: Paradigmas e Controvérsias' aconteceu dia 21 de novembro (terça) das 9h às 18h no Salão Nobre da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ) no Centro do Rio de Janeiro. O evento foi gratuito, emitiu certificado de participação para os presentes e transmitiu toda a programação ao vivo pela internet.

 

Um dos conceitos mais importantes para o entendimento do fenômeno contemporâneo do uso de drogas é o de dependência, face complexa do chamado uso problemático. Apesar dos avanços de diversos campos do saber na sua compreensão, a dependência é um conceito em disputa. Há um paradigma hegemônico que o entende como uma patologia específica da fisiologia cerebral e outros que, a partir de outras perspectivas, tomam-no como um constructo biopsicossocial - e também histórico, cultural e político.

 

 

O seminário trouxe ao Brasil o professor emérito Bruce Alexander, da Simon Fraser University (Canadá), que ficou mundialmente conhecido pela condução de um experimento chamado “Rat Park”. Neste experimento, Alexander buscou romper com o paradigma dominante de que, uma vez em contato com drogas, os animais tornavam-se incapazes de viver sem elas. Ele ofereceu drogas, entretenimento e liberdade a um grupo de ratos e também drogas e confinamento para outro grupo. Após observação, o cientista constatou que, entre outros fatos, os ratos livres consumiam 19 vezes menos drogas que os enjaulados. Mais recentemente, em 2010, o professor Alexander publicou o livro "A Globalização da Dependência" (The Globalisation of Addiction: A Study in Poverty of the Spirit) pela Oxford University Press. Nesta obra o professor repensa de forma radical a natureza da dependência. Além dos estudos de Bruce Alexander, o seminário ainda reuniu especialistas brasileiros no tema para discutir a questão da dependência de drogas e suas implicações para os diversos eixos das políticas públicas, como regulação, prevenção e tratamento.

 

Na conferência de abertura, realizada ao vivo pela internet, o professor Bruce Alexander iniciou sua fala discorrendo sobre os limites da lógica proibicionista no sentido de reduzir o sofrimento relacionado aos cenários de dependência das drogas. Bruce resgatou as faces do forte sentido religioso sobre o tema que estigmatiza a droga como algo proibido e fonte de todos os problemas na sociedade. Segundo o professor, esse tipo de visão acaba por tornar invisível outros problemas sociais que existem na sociedade em que o sujeito está inserido e que vão muito além da própria droga. 

 

Auditório do Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRJ lotou para a conferência com Bruce Alexander

 

O professor Bruce resgatou, então, a problemática do uso de crack no Canadá e lembrou da “DownTown” em sua cidade, Vancouver. Elogiou a Carta de Manguinhos produzida no Seminário Internacional ‘Cenários da Redução de Danos na América Latina’, realizado na Escola de Saúde Pública Sergio Arouca da Fiocruz e falou sobre a centralidade dela nesse momento de retrocessos. Afirmar o cuidado, a proteção e a garantia de direitos na política de drogas em um período que essas ideias estão perdendo força é fundamental.

 

Em um segundo momento, Bruce Alexander resgatou elementos do que ele chama de “história antiga”, onde conseguimos sair da lógica de guerra às drogas e passar para a compreensão de necessidade de tratamento, uma perspectiva em saúde, para o uso problemático de drogas. Entretanto, muito embora o problema de violência contra usuários de drogas por parte de setores militares da segurança pública tenha reduzido em locais mais progressistas, o problema da dependência não está diminuindo e esta é uma realidade sobre a qual precisamos nos debruçar. A mudança de paradigma no campo, segundo o professor, se insere exatamente aqui. Para ele, Vancouver é um dos locais que comprovam o fato da dependência não se resolver apenas com a troca da repressão pelo cuidado no campo das drogas, inclusive com o uso da redução de danos e outros métodos mais humanizados.

 

Bruce afirmou que o país também enfrenta muitos problemas com a dependência em jogos, pornografia, videogames e compras, por exemplo. A questão da dependências não está relacionada única e exclusivamente às drogas.  O problema é que esses outros elementos que transcendem as drogas não são apresentados para a população como potenciais de dependência, mas estão produzindo muito sofrimento. O professor ainda afirmou que refletir sobre e compreender esse fenômeno deve ser uma meta a ser alcançada o quanto antes.

 

O professor foi enfático ao afirmar que não podemos nos restringir apenas à perspectiva neuroquímica quando tentamos entender o fenômeno da dependência. Para ele, é fundamental entender o contexto onde os sujeitos estão inseridos para entender sua relação de dependência com qualquer coisa. “Fui conhecer a cracolândia de minha cidade e fui ouvir as pessoas. Para muitas daquelas pessoas, o uso das drogas era uma possibilidade de fugir de uma realidade onde conviviam com violência policial e privações das mais variadas”, afirmou Bruce.

 

Na época, Bruce foi apresentado aos estudos sobre ratos que eram colocados em pequenas caixas e recebiam uma pequena dose de heroína sempre que apertavam uma barra. Muitos desses ratos apertavam a barra repetidamente por várias vezes, alguns chegando a morrer. Alguns cientistas, então, se basearam nessa experiência para defender a ideia de que as drogas, por si só, levavam à dependência e geravam sofrimento. Bruce então resolveu criar o “Rat Park” (Parque dos Ratos), um espaço amplo com vários tipos de entretenimentos para os ratos, onde também ficou disponível a barra para acessar a heroína. Nesse contexto os ratos também faziam uso da droga, mas de maneira muito menor e saudável, sem se prender à dependência e sem chegar a óbito pela repetição intensa do uso. 

 

O professor foi nítido ao afirmar que essa experiência não pode ser transportado de forma mecânica para a lógica humana, mas deixa fortes indícios de que a dependência não se explica única e exclusivamente pela questão neuroquímica da droga, mas pelo contexto onde os usuários dessas drogas está inserido. Para Bruce Alexander é necessário rompermos paradigmas no campo científico e apontar para compreensões mais totalizantes do fenômeno da dependência, seja de drogas ou de outras substâncias ou hábitos. Para ele, quatro aspectos da modernidade são fundamentais para compreender esse fenômeno. São eles: o capitalismo globalizado de livre mercado, as multidões controladas por corporações, os avanços científicos e tecnológicos e a celebração implacável do poder individual. Segundo Bruce, todos esses elementos exercem forte influência nos quadros de dependência dos sujeitos. 

 

Francisco Inácio Bastos (PACD Fiocruz), Francisco Netto (PACD Fiocruz) e Andréa Galassi (CRR/UnB) compuseram mesa da conferência com Bruce Alexander

 

Após a conferência do professor Bruce Alexander, a professora Andréa Galassi do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB resgatou slides sobre o livro “A Globalização da Dependência” do professor. Foram apresentadas alguns dos itens da “velha história” sobre drogas apresentada por ele confrontou essa concepção sobre a que entenderia a “nova história”. A professora apresentou ainda as referências dos livros e artigos que subsidiaram a fala do professor e anunciou que o texto da apresentação será traduzido e disponibilizado e publicado em breve. O professor Francisco Inácio Bastos, coordenador do Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas da Fiocruz, encerrou os comentários sobre a conferência de Bruce atentando para o fato de que os usuários de crack no Brasil, além de fazer o uso do crack, fazem também uso de uma série de outras drogas lícitas. Entretanto, apenas o crack é demonizado socialmente como o problema destas pessoas, quase sempre se ignorando todo o contexto onde estas estão inseridas. Finalizou apresentando ao professor um pouco do que ele enxerga os limites e relações entre a questão objetiva das drogas e a situação em que se encontra os usuários destas. 

 

Mauricio Fiore (PBPD) coordenou mesa ao lado de Ana Regina Noto (Unifesp)

 

A primeira mesa redonda do seminário teve como tema “Diferentes conceitos de dependências: quais as evidências?” e teve a participação de Ana Regina Noto do departamento de Psicobiologia da Unifesp, José Manoel Bertolote da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp e Dartiu Xavier do Cebrid/Unifesp. Andréa Regina Noto iniciou a mesa apresentando a concepção bioecológica da dependência, que compreende a relação pessoa e ambiente no contexto do fenômeno. Trouxe o exemplo prático da dependência do álcool. Segundo a professora, é na revolução industrial que o álcool começa a ser um grande problema social. A lógica de trabalho do sujeito, inserida na competitividade e no alto produtivismo da época, pode ajudar a explicar esse consumo excessivo da droga. Para Ana, a Lei Seca nos EUA que procurou proibir a droga foi a primeira experiência fracassada da lógica proibicionista. Essa estratégia não reduziu o consumo de álcool e criou um mercado clandestino que impulsionou a violência no território, explicou a professora. A professora também trouxe para debate elementos de um estudo que com soldados no Vietnã. O estudo descobriu que grande parte dos soldados enviados para a guerra desenvolveram dependência a derivados de ópio. A maior parte destes, entretanto, ao retornar para casa encerraram o uso da droga. Para a professora, esse estudo começou a dar indícios de como o contexto é poderoso nessa discussão sobre dependência. Ou seja, é determinante nesse modelo bioecológico a pessoa, o contexto e o tempo em que o sujeito está inserido. Ana encerrou sua explanação resgatando o sucesso da campanha contra o tabaco, que não recorreu à proibição da droga para obter bons resultados. Embora o tabaco não tenha sido proibido, foi proibida a propaganda, foram realizadas campanhas de conscientização, proibiu-se o fumo em locais fechados e um conjunto dos fatores naturalmente acarretou em uma diminuição no uso da droga. 

 

José Manoel Bertolote (FMB/Unesp)

 

O professor José Manoel Bertolote, professor de Neurobiologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Unesp, continuou apresentando conceitos de dependência. Realizou uma breve introdução apresentando padrões de consumo de algumas substâncias, que podem ocorrer como uso experimental, ocasional, recreativo, frequente, abuso, dependência, uso nocivo ou indevido. Em seguida caracterizou o conceito de dependência como a “incapacidade de controle do uso” e “transtorno do controle dos impulsos” através de critérios da DSM (Diagnostic and Statistic Manual) e da CID (International Classification of Diseases) apontou transtornos associados a esses usos.

Dartiu Xavier (Cebrid/Unifesp)

 

O professor Dartiu Xavier, do Cebrid/Unifesp, encerrou a mesa trazendo elementos sobre a fragilidade teórica do conceito que tenta definir um quadro de abstinência de maconha e atenta para dilemas atuais do campo científico como o fato de drogas não serem intrinsecamente perigosas e seus usuários não serem (também intrinsecamente) piores do que outras pessoas não usuárias. Segundo o professor, também devemos atentar para o fato de que a maioria dos usuários de drogas não são dependentes e o fato de continuarmos a tratar o uso da droga como um sintoma. A droga, para Dartiu, é um objeto inerte que pode ser utilizado de variáveis formas e que não é algo necessariamente “mau” que deva ser “diabolizado” pela sociedade. Para ele, o uso da droga é único e singular em cada indivíduo, a alteração de consciência é realizada a partir de um produto inerte e é determinada por contextos objetivos e subjetivos de cada indivíduo, como personalidade, fantasias, sonhos e o meio ambiente.

 

Denis Petuco (Depto. DST/AIDS – MS), Mauro Aranha (Cremesp) e Marcelo Cruz (Ipub/UFRJ)

 

A segunda mesa redonda do seminário teve como tema “Cura, recaída, controle: como se cuida de quem sofre com a dependência?” e contou com a presença de Mauro Aranha do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, Denis Petuco do departamento de DST e AIDS do Ministério da Saúde e Marcelo Cruz do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Mauro Aranha iniciou sua contribuição discorrendo sobre a falência do pensamento ocidental para compreender o ser humano em sua complexidade. Para o professor é necessário compreendermos uma nova forma de encarar o sujeito, a partir da concepção de que o homem uma expressão da construção cultural e social que o antecede. É necessário pensar em um homem que seja livre e que se referencie em algo que lhe dê sentido. A vida para o ser humano só pode fazer sentido a partir da sua capacidade cognitiva de compreender o mundo enquanto um todo a partir do seu indivíduo isolado. O tempo, através da narrativa de nossas vidas, reconfigura nossa maneira de ver e de agir, por esse motivo é fundamental atentarmos para a cronologia em nossos estudos. Ainda segundo o professor, é a partir das nossas próprias narrativas que reconfiguramos e ampliamos nossa capacidade cognitiva de entender a si e ao outro. Aranha encerrou sua fala afirmando que o fato de proibição ou qualquer outra medida repressiva contra as drogas fatalmente levará o sujeito novamente às drogas, pois a saída para esse tipo de cenário é a liberdade e a possibilidade de escolha.

 

Denis Petuco trouxe um histórico da redução de danos e relembrou que a prática surge na década de 20, na Inglaterra. O contexto era uma epidemia do uso de morfina causado pelo retorno de soldados da guerra. Muitos deles possuíam traumas e conviviam com dores muito violentas, por isso os opiáceos serviram como importantes aliados para as dores dos ex-combatentes. Exatamente nesse momento histórico o governo legalizou o uso dessa droga a partir da regulamentação do seu fornecimento legal para os usuários. Inicia-se então as terapias de substituição. A Holanda enfrentou uma epidemia de hepatite por causa do elevado uso de drogas injetáveis em seu território. Em diálogo do governo com a associação de usuários, descobriu-se que as redes de farmácia estavam se negando a ceder novas seringas para o uso de heroína. Nesse momento as começam a ser compartilhadas e a hepatite se alastra. Os holandeses começam, então, um processo de troca de seringas e a epidemia é contida. Esses fatos marcam também o início de um período onde a política de drogas do país começa a ser pensada pelos próprios usuários. Para Petuco, é essa compreensão que faz com que o Brasil tenha tido êxitos em sua política de saúde:

 

“As primeiras populações culpabilizadas pelas epidemias de AIDS no Brasil são convocadas para pensar as políticas de enfrentamento à epidemia de AIDS no Brasil. É por isso que o plano dá certo e logo se torna uma referência mundial.”

 

O professor afirma ainda que enfrentar o preconceito e o estigma é também fundamental para enfrentar uma epidemia. O foco não deve ser expor as pessoas, mas preservá-las. Exatamente o que as campanhas antidrogas não fazem. Além de criminalizar o usuário, as campanhas pouco trabalham no combate ao preconceito e estigma contra o usuário. Isso é um erro grave. Por fim, Petuco traz ainda reflexões sobre como enfrentar o uso de drogas quando o usuário não deseja parar com o uso da droga. A redução de danos produzida na América Latina, para ele, é muito diferente da redução de danos praticada no resto do mundo. Para Denis, é a partir do Seminário Internacional de Redução de Danos na América Latina que ele enxerga um novo momento para o campo. Citou o programa “Braços Abertos” de São Paulo/SP e o programa “Atitude” de Recife/PE e afirmou que a redução de danos latina se propõe entender essa intervenção da prática como estrutural, incidido para o enfrentamento do estigma, preconceito, fortalecendo a saúde pública e enfrentando a desigualdade social. Nesse sentido os grandes pensadores da redução de danos neste novo momento se deslocam do norte para o sul, encontrando-se essencialmente em localidades como o sudeste asiático, a África e América do Sul.

 

Marcelo Cruz encerrou a mesa apresentando a ideia de que o conceito de cura não se aplica para algo que não é uma doença, ou seja, no campo das drogas essa ideia não cabe. Para Cruz, é melhor se pensar nos processos de administração do uso problemático, lidar com a recaída sem ser pelo âmbito moral e não atribuir culpas ao paciente. Para ele, a abstinência é um conceito que não se opõe a ideia de redução de danos mas enxerga como problemática a exigência de abstinência do paciente. Abstinência em si pode ser uma postura que o usuário pode encontrar voluntariamente. O professor encerrou sua contribuição afirmando que a dependência de drogas se caracteriza pela perda do controle, quando não se pode mais escolher, e essa perda do controle tem múltiplas determinações: biológicas ou sociais.

 

Andrew Costa é Assessor de Comunicação do PACD Fiocruz