Presidente da Intercambios, Graciela Touzé fala sobre a política de drogas argentina

 

(Graciela Touzé | Foto: Andrew Costa/PACD Fiocruz)

 

Graciela Touzé é especialista em Ciências Sociais e Saúde, presidenta da Intercambios (Associação Civil para o estudo e atenção de problemas relacionados com as drogas), professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires desde 1990, consultora do Grupo Internacional de Investigação em Toxicomanías da Federação Internacional da Universidade Católica de Paris desde 1989, foi membro fundadora da Rede de Organizações Não Governamentais que Trabalham com AIDS da Argentina e da Rede Latinoamericana de Redução de Danos (RELARD), além de membro do Fundo de Ajuda Toxicológica e integrante da equipe técnica da Comissão Nacional para o Controle do Narcotráfico e o Abuso de Drogas entre 1986 e 1989.

Em Salvador/BA para o 12º Encontro Nacional de Redução de Danos da Aborda, Graciela cedeu alguns minutos de sua agenda para conceder entrevista ao PACD Fiocruz, onde discorreu sobre o contexto da política de drogas na Argentina, as políticas de redução de danos no país e também sobre o que tem sido realizado pela Intercambios e como sua organização tem trabalhado e se articulado em rede com parceiros pelo mundo.

 

Gostaríamos de começar essa entrevista com sua visão sobre a política de drogas na Argentina e sobre como estão funcionando as políticas de redução de danos, de maneira mais específica, por lá.

 

Graciela Touzé: Bem, a política de drogas na Argentina está totalmente impactada pela situação política geral e o que estamos observando, com bastante preocupação, é um recrudescimento da lógica de segurança que está inundando a política de drogas. Não se pode deixar de levar em conta que em 2015, na campanha eleitoral presidencial, o atual presidente da Argentina, Macri, havia criado em sua plataforma eleitoral três objetivos centrais e um deles seria a luta contra o narcotráfico. Os três objetivos que Macri criou em sua campanha foram: erradicação da pobreza, luta contra o narcotráfico e alcançar a unidade dos argentinos. Esta centralidade do tema luta contra o narcotráfico é algo que se percebe, se vive cotidianamente e tem a ver com o lugar bastante predominante que adquiriu o Ministro da Segurança como responsável justamente de tudo o que fazem sobre o controle da oferta. Foi só o governo assumir - em dezembro de 2015 – que em janeiro de 2016 o presidente lança um decreto de emergência em segurança.

 

Evidentemente a Argentina está atravessando discussões e tensões que estamos vendo em outros países e para nós este é um tema muito importante. Primeiro porque seria totalmente contrário a legislação argentina que tivéssemos uma lei que inibe as forças armadas de intervir em questões de segurança e o tema do controle do tráfico ilícito de substâncias vai de encontro com a legalidade nesse sentido. Por outro lado, na prática, o que viemos vendo também é algo que se observa em muitos outros países da região. Esse discurso do controle do narcotráfico em realidade se centraliza e se focaliza na perseguição dos setores mais vulneráveis e os setores menos importantes na cadeia do tráfico. Então há um discurso que se instalou fortemente na opinião pública, por meio dos grandes meios de comunicação empresariais, que elege a perseguição exclusiva ao traficante de varejo, o pequeno traficante. É óbvio que a perseguição desse pequeno traficante não desmonta o negócio do crime organizado, mas foi criada esta representação de que a violência nestes territórios acontecem pelas mãos desses personagens e são esses que devem ser perseguidos. Isto é parte da política que estão levando adiante e há uma orientação do governo nacional para que sejam as forças de segurança e os tribunais locais que assumam essa perseguição, para além do que já é feito pela polícia federal.

 

Nós temos uma lei que já leva vários anos, uma lei de 2005 que institui que as províncias, nossos estados, se aderem a essa lei, passam sua força de segurança e seus tribunais locais a se encarregarem da perseguição dos pequenos delitos. As províncias que aderiram a essa lei são Buenos Aires e Córdoba, por exemplo. O resultado que se observou, e que vem sendo aumentado, são as taxas de criminalização dos consumidores, dos pequenos vendedores e que contra o crime organizado não acontece nada. Só se aumenta o número de pessoas encarceradas, quase sempre pessoas em situação de vulnerabilidade muito alta. Este fenômeno também é compartilhado com outros países da região, particularmente o aumento de mulheres encarceradas, mulheres pobres, chefes de família, mães de filhos pequenos e que por muitas vezes utilizam a pequena venda de drogas como estratégia de sobrevivência. A criminalização destes setores não afeta os grandes negócios do narcotráfico, porque são ligações que rapidamente são substituídas. Temos também uma postura um pouco esquizofrênica, porque essa lógica criminaliza jovens que em verdade são vítimas dessas drogas por sua vulnerabilidade social. Em síntese, eu diria que hoje estamos em um momento bastante contraditório em matéria de política de drogas, pois existe um discurso de reduzir a demanda por drogas respeitando os direitos humanos, mas se esquece da necessidade de não criminalizar essas pessoas.

 

Sobre o tema da redução de danos em particular, vou um pouco na linha da opinião pública nacional, que é muito influenciada pelos meios de comunicação. Claramente na Argentina há três estereótipos diferentes de pessoas que usam drogas e a resposta para cada uma delas é diferente. Uma é o jovem pobre usuário de pasta base de cocaína em condição de alta vulnerabilidade, que termina sendo visto como um suspeito e alguém perigoso, onde se associa esse consumo e essa situação de vulnerabilidade com situações de violência e frente a isso as respostas variam entre a resposta mais punitiva e afirma a necessidade de se permitir internações compulsórias. Um personagem totalmente diferente do usuário dos setores médios, médios altos, que consume substâncias estimulantes em espaços festivos e que adquiriu muita notoriedade e se instalou muito na agenda pública a partir de um fato muito lamentável que vivemos na Argentina. Em uma festa eletrônica em Buenos Aires morreram cinco pessoas com intoxicação por substâncias psicoativas. Esse fato acabou por colocar na mesa o que estava ocorrendo já há um tempo no país, mas vinha sendo invisibilizado.

 

Sabe qual era a substância que eles usaram?

 

Graciela Touzé: Não se tornou público qual foi a droga utilizada, mas supostamente era MDMA. Acredita-se que as causas de morte não foram exclusivamente pelo uso das substâncias, mas pelo contexto onde foi feito o uso dessas substâncias. Por exemplo, a quantidade de gente que havia nessa festa era muitíssimo maior que a permitida, não havia acesso fácil à água para hidratar-se, havia uma quantidade de elementos para além do uso das substâncias. O que quero dizer é que, frente a essa situação, correspondente a um outro setor social, a resposta e o discurso que está se construindo é muito mais amigável para a redução de danos. Nesse sentido está sendo construído, tanto em nível da opinião pública, como em nível das respostas governamentais, linhas de trabalhos que são mais permissivas, mais próximas às estratégias da redução de danos. O terceiro perfil que se instalou muito forte e que atravessou a discussão em matéria de drogas nesses últimos meses tem a ver com a aprovação que se deu em março (2017) da lei da cannabis medicinal. Foi resultado do trabalho sustentado e publicizado fundamentalmente por grupos mães de crianças com epilepsia refratária, assim como outras patologias, que tiveram a capacidade de gerar uma reação social de simpatia e solidariedade. Importante destacar que houveram também efeitos contraditórios, porque enquanto se permite o uso medicinal, criminaliza-se ainda mais o uso recreativo.

 

Fazendo uma pontuação sobre esse caso, parece ser óbvio para nós da saúde que as pessoas discutem o uso da substância em si como sendo um fato de risco e não entendem os fatores determinantes implicados no contexto da política de drogas. Isso parece ser um avanço de consciência que ainda precisa acontecer…

 

Graciela Touzé: Isso é certo. Na Argentina nós temos um caminho muito largo a percorrer, de sensibilização e de conscientização das próprias equipes de saúde nesse tema. Eu venho falando da opinião pública, de quem se supõe que teria maior claridade em relação a essas questões, mas infelizmente estão atravessados pelos preconceitos. Nesse sentido creio que o trabalho com as equipes de saúde é central em relação a isso. Já que estamos debatendo isto, é bom lembrar que o 12º Encontro Nacional de Redução de Danos aqui em Salvador segue nucleando uma massa crítica que apresenta esse debate entre outros temas. Me parece que estamos vivendo momentos que não são fáceis nessa região para quem compreende a necessidade de modificações nas políticas de drogas. Para quem defende a redução de danos nesse momento é absolutamente imprescindível que estejamos próximos, que nos demos apoio, que possamos elaborar em conjunto. Para mim, a experiência do Seminário Internacional – Cenários da Redução de Danos na América Latina realizado no Rio de Janeiro e a produção da carta de Manguinhos foi um exemplo muito claro nesse sentido, porque existiu algo pontual que havia ocorrido nesse momento em São Paulo, o programa Braços Abertos.

 

Reforçando o ponto de vista da Fiocruz, acreditamos ser fundamental ter uma rede com esses vários setores: academia, sociedade civil e setores do governo. Acho que você já falou mais ou menos sobre isso, mas seria legal acrescentar também um pouco do trabalho da Intercambios, como surge, quais ações já conseguiram fazer, como está o momento atual, etc.

 

Graciela Touzé: Bem, a Intercâmbios surge como associação civil já faz mais de 20 anos, ou seja, foi fundada em 1995 e surge com um objetivo fundacional em um contexto de epidemia do HIV entre usuários de drogas injetáveis, uma situação epidemiológica que nos anos 90 compartilhamos com Brasil, com Uruguai e com Argentina. Acredito que também compartilhamos a ausência de políticas públicas junto a esse problema e o que isso traz aparelhado, o que foi, a meu modo de ver, quase um genocídio. Pelo menos no caso argentino, uma geração de personagens que injetavam drogas morreram de uma morte evitável, porque com uma intervenção oportuna e efetiva de redução de danos, poderíamos ter evitado muito do que ocorreu. Nesse contexto, para tentar preencher esse vazio, é que nasce a Intercâmbios. Desde sua origem nos anos 90 até hoje, com muitas mudanças nos contextos do uso de drogas e contextos políticos-sociais, trabalha na perspectiva da afirmação da redução de danos, que é a perspectiva que defendemos e sustentamos como um necessário debate e trabalho em prol da modificação da política de drogas, entendendo que o maior dano que enfrentamos é produzido pela lógica de guerra neste campo.
 

O trabalho que viemos desenvolvendo tem a ver com diferentes níveis, com um nível mais local de aproximações no contexto no qual a instituição está inserida na cidade de Buenos Aires, na área metropolitana de Buenos Aires, com setores muito empobrecidos, com setores de alta segregação social, onde tentamos chegar adiante com algumas linhas de intervenção, que busquem isso, que busquem dar respostas aos problemas que se associam ao consumo de drogas. Mas é uma perspectiva que questiona a proibição dessa prática. Isso inclui ações em espaços educativos que nos parece um âmbito muito importante de trabalhar, o âmbito escolar. O trabalho com adolescentes mais jovens, uma linha de trabalho que iniciamos a partir do fato ocorrido na festa eletrônica, é uma linha de redução de riscos vinculado, entendendo a particularidade que tem esses estes contextos. É um trabalho muito forte e sustentado de acompanhamento e formação de equipes de saúde.

 

A Argentina passou por uma situação muito particular e muito rica, que se completou em 2010 com a aprovação de uma lei de saúde mental, é uma lei que está baseada num paradigma de defesa de direitos e que inclui o consumo problemático de substâncias neste campo. No discurso isso é muito interessante, todo mundo diz que é bom, mas posto na prática concreta de que o usuário de drogas possui algum problema mental, que é uma pessoa com direitos, não é uma coisa tão fácil de se administrar nas equipes. Então nós viemos trabalhando muito nesse sentido. E depois há toda uma dimensão do trabalho institucional que tem a ver com o mais global, com a articulação com outras organizações, com outros grupos, também do exterior do país. Entendemos que hoje, num mundo globalizado, uma política de drogas não se define somente nas fronteiras internas do país e também é necessário levar os debates para fortalecer iniciativas em planos supranacionais. Então a articulação com organizações como a ABORDA, como a Fiocruz, organizações de países diferentes, com organismos das Nações Unidas ou a Comissão Interamericana de Abuso de Drogas.