(Francisco Inacio Bastos / Foto: ICICT/Fiocruz)
Entrevistamos Francisco Inacio Bastos, pesquisador do ICICT - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde e coordenador geral do Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas da Fiocruz, para saber um pouco do que foi realizado até agora, fazer um balanço do que foi feito e também perguntar sobre o que podemos esperar do PACD Fiocruz para o próximo período. “Chico” Inácio, como é mais conhecido, é médico formado pela UERJ, doutor em Saúde Pública pela Fiocruz e tem como principal foco de suas pesquisas a epidemiologia e prevenção do abuso de drogas e do HIV/AIDS. Com mais de 280 publicações em revistas científicas e 100 capítulos de livros publicados em Brasil, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Canadá e diversos outros países pelo mundo, é uma das referências de nosso país quando se quer falar sobre drogas de forma cientificamente embasada.
A partir de quatro pequenas perguntas, Chico falou um pouco sobre como avalia o que já foi produzido pelo programa até agora, elogia a iniciativa da Fiocruz em estudar e sistematizar conhecimentos em um tema que vem crescendo no mundo como um todo e destaca a importância de continuarmos avançando nesse sentido. Cita a posição de destaque da Fiocruz no debate sobre drogas no Brasil hoje e a relevância dessa discussão para a criação de soluções realmente eficazes para a crise de segurança pública pela qual atravessa o país e principalmente o Rio de Janeiro. Falou ainda sobre as redes de colaboração científica e profissional da qual o PACD faz parte e apontou algumas das que serão as inciativas do programa para o próximo período.
Qual sua avaliação dos primeiros anos de atividade do PACD e o que destaca como os pontos altos do que já foi realizado até agora?
Francisco Inácio: Creio que os pontos altos são, em primeiro lugar, o reconhecimento da relevância da questão das drogas em si como dimensão importante na saúde pública contemporânea, não só no Brasil como nos mais diversos países em todo o mundo.
De uma forma ou de outra, as grandes universidades e institutos de pesquisa em todo o mundo já atuam nessa área e diversos grupos da Fiocruz já vinham fazendo isso nas suas diversas interfaces. Por exemplo, com as consequências mais diretas do consumo prejudicial em si: as overdoses e os quadros de dependência, assim como consequências mediadas por outras questões da vida em sociedade, como, por exemplo, a inter-relação com o trânsito (dirigir sob o efeito de álcool e outras substâncias) ou com a violência, esta última praticamente inevitável uma vez que um conjunto extenso de substâncias é comercializada por facções criminosas.
O segundo ponto a destacar é que, sendo a Fiocruz muito grande, não apenas o campus principal, como nas suas mais diferentes unidades Brasil afora, ganhamos muito ao integrar as ações dos diferentes grupos de pesquisa e unidades. Temos a chance de trocar experiências e ideias, pois, sem que exista um programa, com reuniões periódicas, acabaríamos por perder a dimensão realmente coletiva do trabalho nessa ou em qualquer outra área.
Apenas a título de exemplo, em algumas ocasiões, nós que atuamos no Rio de Janeiro tivemos a oportunidade de escutar e debater pesquisas realizadas em Pernambuco. Para mim, como indivíduo que conhece os colegas de lá há muito tempo, já dispunha de parte das informações, pois trocamos e-mails com alguma frequência. Mas para os demais colegas as informações foram novas, além de colherem o benefício inegável da interação face-a-face do diálogo presencial.
Este é apenas um exemplo dentre muitos, e nem sempre a necessidade de integrar esforços é fruto da distância geográfica. É comum, por exemplo, que os colegas que atuam no Consultório na Rua, que é vizinho nosso, não tenham conhecimento de que estamos fazendo na nossa unidade, e vice-versa. Portanto, mesmo entre vizinhos, cabe integrar e debater, pois o mundo contemporâneo é, paradoxalmente, fortemente interligado mas disperso. Acredito que este paradoxo é fruto da torrente de informações que recebemos a cada dia. Não é que a informação não exista, mas quem de nós consegue arrumar tempo para consultar todos os sites, ler com o devido cuidado cada mensagem das diversas listas de debates, etc.?
Em suma, nos dias de hoje, se não estruturarmos redes e programas, a tendência mais forte é a dispersão de informações específicas no oceano de informações gerais, que nos chegam a cada minuto, ao longo de cada dia. Nesse sentido, o PACD vem sendo fundamental.
Como você enxerga a importância da Fiocruz e seu debate acumulado sobre política de drogas no contexto atual?
Francisco Inácio: Vejo principalmente sob dois aspectos. Um deles é a prioridade inconteste da perspectiva da saúde, seja ao nível dos cuidados individuais, seja na dimensão propriamente coletiva da saúde, que lida com comunidades e populações. Sem o contraponto da saúde, e a despeito de décadas de pesquisas e ações, infelizmente, a questão acaba gravitando em torno dos mesmos eixos. O eixo histórico clássico, que é de enxergar o uso prejudicial e a dependência de um ponto de vista moral, e o eixo, que só faz crescer nesses tempos de crise, que é o da criminalização.
No Brasil de hoje, e especialmente no Rio de Janeiro, o debate sobre segurança pública é, obviamente, incontornável, mas ele precisa do diálogo com a saúde pública, inclusive para renovar o paradigma da própria segurança pública. Sempre relembrando algo absolutamente óbvio: o bem supremo que, em tese, é o objeto central de qualquer política pública, é a proteção e a promoção de uma vida saudável e livre de ameaças e constrangimentos, na medida do possível, uma vez que não existem sociedades perfeitas. Mas se as políticas em vigor se mostram associadas a um aumento da violência e restrições a direitos básicos, como o de transitar pelas cidades, algo está profundamente errado.
A saúde pública não tem soluções mágicas, pois nada ou ninguém as têm, mas certamente é parte fundamental do diálogo, que pode até ser tenso e muitas vezes o é, mas é sempre melhor do que a indiferença e a imposição pela força do silêncio.
A organização em rede e a parceria com outras instituições nacionais e internacionais são elementos fundamentais para o PACD e a Fiocruz como um todo. Qual o balanço que você faz do atual estágio de organização do programa e quais espaços você acredita serem fundamentais que se continue construindo e que se procure construir?
Francisco Inácio: Acredito que já caminhamos bastante, mas temos muito ainda por fazer. Um exemplo de absoluto sucesso foi a realização de seminários temáticos, versando sobre a questão da maconha, do álcool e das políticas de redução de danos. A disponibilização de um site dedicado ao programa nos insere numa dimensão bem mais ampla de interação, uma vez que a possibilidade de interação face-a-face (como em reuniões e seminários) e mediante redes sociais e ferramentas computacionais, é claramente sinérgica.
Quais os desafios do PACD para o próximo período e o que podemos esperar do programa quanto à suas atividades e novos diálogos com a sociedade através de projetos, seminários e encontros?
Francisco Inácio: Temos várias ideias e projetos, que espero que possam ser integralmente realizados, a despeito da inegável crise política e econômica, que afeta o país como um todo e o rio de janeiro, em particular. Ressalto a questão do Rio de Janeiro, não apenas por ser carioca e residir e trabalhar nesta cidade há cinco décadas, mas também porque dispomos de espaços de reunião no campus de Manguinhos, e palestrantes e audiência precisam de paz e segurança para se deslocarem para o campus, e lá assistirem e debaterem os temas que compõem cada seminário, oficina ou atividade análoga.
Neste ano de 2017 ministrei um curso em meio a uma sequência de conflitos nas comunidades vizinhas, e aprendi, na prática, como é difícil que consigamos nos concentrar, seja eu mesmo, sejam os alunos. Isso para nos ater ao problema que vivi de forma mais específica dentro da Fiocruz. Os moradores dos territórios afetados por estes conflitos convivem de maneira ainda mais intensa com a violência e colhem experiências ainda muito mais traumáticas e dolorosas que as nossas. Enfim, torço para que essa situação de violência melhore com urgência, temos planos ambiciosos, pois, afinal, sem os sonhos e projetos não somos de fato humanos.
Dentre as iniciativas já planejadas estão três que já posso adiantar: o debate sobre o uso terapêutico da cannabis e seus compostos, que ganhou um reforço importante com a publicação bastante recente de um artigo seminal sobre canabinoides no tratamento da epilepsia refratária; um seminário sobre a inter-relação entre política de drogas e encarceramento, tema igualmente central, em um país onde a população carcerária se aproxima velozmente de 700.000 brasileiros e as condições são sabidamente degradantes; e, finalmente, um debate sobre o próprio conceito de adicção/dependência, que está hoje em curso em diversas instituições e revistas mundo afora. Neste último aspecto, é hora de acertar os ponteiros das nossas concepções com os avanços da pesquisa em todas as áreas, da Neurociência às Ciências Sociais. Não faz sentido progredir em todos os campos do conhecimento, e se manter aferrado à concepções claramente defasadas.