Encontro Nacional de Redução de Danos reúne profissionais e pesquisadores da área em Salvador

 

O 12º Encontro Nacional de Redução de Danos aconteceu entre os dias 02 e 05 de agosto no Centro de Atenção à Saúde Doutor José Maria Magalhães Neto em Salvador/BA. O encontro contou com a participação de 250 participantes entre trabalhadores, pesquisadores, estudantes e usuários de drogas, representando todos os estados da federação, e marcou os 20 anos de fundação da ABORDA – Associação Brasileira de Redução de Danos, entidade que organizou o evento. Para Álvaro Mendes, presidente da associação, o objetivo do encontro foi possibilitar o intercâmbio de experiências práticas na área e afirmar a importância do cuidado na política de drogas através da Redução de Danos. Ao final do encontro, foi produzida a “Carta Bahia” com a afirmação de um projeto ético e político específico para a prática da redução de danos.

 

Foto: Álvaro Mendes - Presidente da ABORDA na abertura do encontro

 

O encontro começou com a apresentação do espetáculo “Negro Bom é Negro Vivo” com usuários do programa “Corra para o Abraço” (inserir vídeo da apresentação) e foi seguido de uma mesa sobre os “Cenários contemporâneos da Redução de Danos”, com Antônio Nery da Faculdade de Medicina da UFBA – Universidade Federal da Bahia. Nery apresentou o conceito e a importância da redução de danos em sua perspectiva humanizada sobre a saúde, destacando a relevância do cuidado e do afeto para a transformação dos sujeitos de forma a respeitar seus direitos humanos mais básicos. Lembrou da iniciativa pioneira da Bahia na prática da redução de danos ao rodar a cidade de Salvador distribuindo seringas, camisinhas, fazendo exames de HIV, dialogando com a população em situação de rua e também levando afeto para potencializar o que ele chama de “resgate”. O professor afirmou de forma contundente que, mais importante que a distribuição do material comprado pela secretaria de saúde, era o diálogo sincero e a partilha de afeto com os usuários sobre suas vidas.

 

Foto: Auditório lotado para mesa de abertura do encontro

 

Antônio Nery relembrou que a redução de danos, em seus primórdios, era uma estratégia clínica de encontro entre pessoas na dimensão de garantir a vida. A clínica da vida, segundo ele, reconhece no homem e na mulher sua autonomia, contanto que estes tenham o cuidado de proteger sua vida e a dos demais. Ainda segundo o professor, um grande movimento influenciou e transformou o ato clínico da redução de danos em um ato político. Para Nery “Redução de Danos é mais do que troca de seringas, distribuição de preservativos, curativos nas clínicas de rua. Redução de danos é uma proposta política que propõe aos homens e mulheres da terra o cuidado, o compartilhamento e a vida em comum. Reduzir riscos e reduzir danos é não se expor de determinados perigos. É reconhecer que existe o dano e proteger o sujeito desse dano, cuidando da vida ao mesmo tempo que preserva sua autonomia”. O professor completou afirmando que a dimensão que damos hoje à redução de danos, proposta por argentinos e uruguaios, é de que esse ato seja auto afirmado como latino-americano e nos diferencie da política repressora norte-americana através da defesa intransigente da humanidade e do cuidado.

 

Foto: Painel "Intersecções no Projeto Ético-Político da Redução de Danos" com a presença do PACD Fiocruz

 

A primeira mesa da quinta-feira (3) foi o painel “Intersecções no Projeto Ético-Político da Redução de Danos” com Paula Adamy do Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais do governo federal, Guilherme Portugal da ABORDA/MG e Francisco Netto do PACD – Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas da Fiocruz. Paula apresentou a importância da intersecção entre elementos da política de drogas com debates sobre gênero e orientação sexual e apresentou números sobre métodos de prevenção com recorte específico para usuários de crack. A profissional ainda afirmou a necessidade de combater as vulnerabilidades no campo da saúde a partir de articulações intersetoriais de prevenção combinadas por meio do SUS – Sistema Único de Saúde. Segundo Paula é “importante transpor barreiras causadas por estigma, discriminação e outras práticas excludentes. Nesse sentido a redução de danos é fundamental para pessoas que usam álcool e outras drogas em estratégia organizada pela portaria GM/MS 1.028 de 1º de julho de 2005. Essa estratégia pensa na importância de um cuidado integral, intersetorial e também está associada a prevenção do HIV”. O advogado criminologista Guilherme trouxe uma perspectiva estrutural sobre a política proibicionista de drogas e criticou a lógica da repressão criminalizadora que não pretende garantir direitos, mas controlar uma população pobre, vulnerável e majoritariamente negra e jovem. Para ele é fundamental fugir do direito penal como solução para a problemática das drogas e apostar na saúde e na ética da Redução de Danos. Portugal ainda afirmou que é necessário colocarmos em diálogo com a política sobre drogas, outras discussões como o abolicionismo penal e a luta antimanicomial.

 

Francisco Netto, coordenador executivo do PACD Fiocruz, encerrou a mesa apresentando um contexto da política de drogas atual e destacou algumas contradições das atuais diretrizes governamentais para o campo. Resgatou alguns elementos da fala do professor Antônio Nery na abertura do encontro e discutiu a importância de uma ética para além da técnica na prática da Redução de Danos. Apresentou as atividades e eventos que a Fiocruz tem organizado sobre o uso de substâncias psicoativas e reafirmou a importância da dimensão do cuidado na discussão dentro deste campo. Citou as iniciativas do PACD Fiocruz como o Seminário sobre Maconha, o Seminário sobre Álcool, o Seminário sobre a Redução de Danos na América Latina e a produção da Carta de Manguinhos, manifesto que defende a prática de cuidado na política de drogas latina e foi assinada por mais de 100 entidades por todo o mundo. Apresentou ainda o projeto Redes, inaugurado em 2014 para o trabalho de uma articulação intersetorial no campo da política de drogas como forma de promover a saúde e o cuidado no campo. Falou ainda da realização do Seminário Nacional - Audiência de Custódia, Cuidado e Inserção Social na Prevenção do Encarceramento e do Uso de Drogas realizada em São Paulo, pensando a política de drogas em sua interface com a saúde é o direito. Por fim, discutiu o conceito de dependência química, que foi um paradigma moral e agora é tratado como uma doença mental, e afirmou que este conceito está sendo superado ao trazer diversos questionamentos sobre essa questão. Afirmou então, a necessidade de trabalhar esse conceito de maneira mais ampla, sociológica e antropológica. Nesse sentido, para o aprofundamento dos debates científicos nesse campo da dependência química de forma mais específica, anunciou que o PACD Fiocruz planeja construir em breve um seminário sobre “Addiction” ainda este ano. Netto encerrou sua fala com a uma leitura da Carta de Manguinhos.

 

Foto: Painel "Atuação dos Redutores de Danos e o Reconhecimento da Profissão"

 

O painel sobre a “Atuação dos Redutores de Danos e o Reconhecimento da Profissão” contou com a presença de Juma Pereira da ABORDA Distrito Federal, Matheus Araujo da ABORDA Sergipe e Rafael Baquit da ABORDA Ceará, além de outros redutores que se somaram à mesa posteriormente. Foi o momento onde profissionais da prática de redução de danos apresentaram suas experiências para intercâmbio coletivo. Falou-se sobre a importância do profissional redutor de danos e foram apresentados vários projetos que hoje estão sendo desenvolvidos no país. Foi feito um resgate do histórico de 20 anos da Aborda e se afirmou a organização como pilar fundamental para a construção de um futuro onde a política de drogas possa ser pautada no cuidado e preservação da vida. Também foram apresentadas iniciativas como ações de redução de danos em rede durante festas raves e, nesse método de intervenção específico, destacou-se a construção da ABORDA na rede de redutores de danos no Ceará.

 

Foto: O painel "Redução de Danos e Lutas Populares"  foi formado exclusivamente por mulheres

 

O painel “Redução de Danos e Lutas Populares” trouxe para o centro do debate as faces de diálogo entre a prática com os movimentos sociais que interferem, de diferentes formas, nas cenas de uso. A mesa, formada exclusivamente por mulheres, contou com a presença de Nathalia Oliveira da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, Luana Malheiro da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e Karen Oliveira Diogo da Redes Trans/Travestis. O espaço começou com uma caracterização da mulher usuária de crack, a apresentação de algumas narrativas das cenas de uso e também estatísticas de encarceramento pela política de drogas. Apresentou-se contradições do machismo também no contexto do uso de drogas, reafirmando seu caráter estrutural e, a partir da apresentação de cenas etnográficas, a pesquisadora Luana colocou casos reais de opressão de gênero dentro do contexto de usuárias de crack. Para ela, além da opressão classista, a violência de gênero também se faz presente a partir de diversas facetas nas cenas de uso. Karen trouxe as contradições da proibição dentro do contexto das pessoas trans e deu destaque para a proibição do silicone líquido. Atentou para as sequelas do corpo que a migração do silicone causa no corpo, alojando-se em pulmão, rins, saco escrotal, etc. Essas operações cirúrgicas, segundo ela, costumam ser acompanhadas do uso de diversas drogas, principalmente pelo raro uso de anestesia, além do uso de hormônios e anabolizantes através de seringas compartilhadas. Por esse motivo, os profissionais da redução de danos devem ter especial atenção para com esse segmento da população.

 

Foto: Aproximadamente 250 pessoas participaram do Encontro Nacional de Redução de Danos em Salvador/BA

 

O encontro ainda contou com o painel “Fronteiras e Drogas: Desafios e Possibilidades” com Cleiton Euzébio da UNAIDS, Ana Neta do Nascimento da SMS - Secretaria Municipal de Saúde de Tabatinga/AM e Felipe David Gomez Bittencourt da SMS – Secretaria Municipal de Saúde de Santana do Livramento/RS às 16:00h da quinta. Na sexta houve espaço para o debate sobre “Populações Vulneráveis e Ações de Redução de Danos”, “Experiências diversificadas e exitosas em Redução de Danos” e “Política de Drogas no Brasil e na América Latina”, para além da discussão e confecção da “Carta Bahia”. O sábado do encontro foi reservado exclusivamente para a auto-organização dos membros da ABORDA e encarregou-se de trâmites mais burocráticos e organizativos da própria associação, como a realização de sua assembleia nacional e o planejamento da organização para o ano de 2018, quando será realizado o 13º Encontro Nacional de Redução de Danos.

 

 

Andrew Costa é Assessor de Comunicação do PACD Fiocruz