Carta de Manguinhos é assinada por mais de 100 entidades

 

Em tempos de radicalização da violação de direitos e ameaça à democracia, é preciso defender a radicalidade da potência do cuidado. Para tanto apresentamos esta Carta de Manguinhos[1], região da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, onde se situa a Fundação Oswaldo Cruz[2] e diversas favelas e comunidades pobres que são constantemente atingidas pela nefasta e violenta política de guerra às drogas que criminaliza e autoriza ações bélicas, neste como em tantos outros territórios periféricos de toda a América Latina.

O mundo vive um momento de avanço das forças conservadoras, que na América Latina se expressa através da fragilização dos processos democráticos; no aprofundamento das iniquidades socioeconômicas; no aumento da fragmentação e segregação social. Tais dinâmicas, em seu conjunto, põem em risco direitos fundamentais. Exemplo emblemático foi a recente intervenção no bairro da Luz, na cidade de São Paulo. Durante quatro anos sustentou-se um projeto intersetorial inspirado nos princípios da Redução de Danos que visava articular ações de garantia de direitos à moradia, trabalho/renda e cuidado na região conhecida como “cracolândia”. Em maio de 2017 foi realizada uma operação policial com a intenção de uma “limpeza social”, com utilização do pânico moral para atender a interesses da especulação imobiliária. A violência e as arbitrariedades contra pessoas em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade social, rotuladas como “viciados em crack”, seguiram-se por dias. Assim, uma política pública de cuidado, promoção da saúde e de direitos foi substituída pela repressão e violação de direitos.

Arbitrariedades como estas não são exclusivas do Brasil, e casos similares são encontrados em muitos lugares da América Latina, onde a droga funciona como pretexto para intervenção territorial. Ocorrem também outras situações de violência estrutural, como dificuldade de acesso a políticas públicas, assassinatos, prisões, exposição a doenças infectocontagiosas, falta de acesso a medicações e a políticas que garantam a cidadania.

As políticas de Redução de Danos, em seus esforços pela promoção da saúde, cidadania, direito à cidade, justiça social e direitos humanos das pessoas que usam drogas, não está isenta dos efeitos da conjuntura conservadora. O atual modelo de política de drogas opera seletivamente, criminalizando, encarcerando e estigmatizando sobretudo as populações mais pobres, moradoras de regiões periféricas, e de modo diferenciado as pessoas em situação de rua, negras, indígenas, mulheres e jovens.

As experiências bem sucedidas de cuidado são opostas à violência intervencionista defendida pelas políticas conservadoras. As evidências e o acúmulo político da Redução de Danos rejeitam propostas que não reconhecem a diversidade da experiência humana, e que se utilizem apenas da racionalidade biomédica e da criminalização de condutas consideradas desviantes. A Redução de Danos que realizamos no cotidiano de nossas práticas, em todo o continente, se apresenta como alternativa concreta ao fracasso de concepções e intervenções dicotômicas e simplistas. Não obstante, é preciso avançar ainda mais na direção de uma Redução de Danos interseccional, capaz de articular a defesa da reforma das políticas de drogas às lutas das mulheres, da população negra, dos povos indígenas, LGBTI’s e das múltiplas juventudes. 

Diante disso, propomos a formulação de uma Redução de Danos inserida num projeto despenalizador e emancipatório, em que experiências subjetivas e corporais não sejam objeto de ações repressivas e disciplinadoras. A Redução de Danos, no atual contexto, é ferramenta potente de questionamento dos modelos de controle, implicando a afirmação e respeito à liberdade e autonomia das pessoas que usam drogas.

Consideramos urgente compartilhar nossas experiências e resistências, promovendo intercâmbios que consolidem nossa articulação Latino Americana em defesa de políticas públicas de Redução de Danos conectadas a reforma da política de drogas.

 

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[1] Manguinhos, bairro em que se situa a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), começou a se formar no início do século XX, a partir da remoção de favelas e cortiços do centro da cidade, parte do processo de higienização e modernização da cidade do Rio de Janeiro. Hoje, Manguinhos reúne mais de 30 mil habitantes, e é mais um dentre tantos territórios populares vitimados pelas múltiplas formas de violência engendradas no contexto da política de guerra às drogas, em toda a América Latina.
[2] Maior instituição de pesquisa em saúde pública brasileira, com 117 anos de existência, vem aprofundando o debate sobre estratégias de Redução de Danos e política de drogas desde 2009. Organizou, através do se Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas o Seminário Internacional: Cenários da Redução de Danos na América Latina, nos dias 29 e 30 de maio de 2017, na Escola Nacional de Saúde Pública, evento no qual se construiu a presente carta.
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Assinam a Carta de Manguinhos as seguintes organizações e instituições:

  1. Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas da Fundação Oswaldo Cruz - PACD/Fiocruz (Brasil)
  2. International Drug Policy Consortium – IDPC
  3. Harm Reduction International – HRI
  4. Transnational Institute - TNI
  5. Associação Brasileira de Redução de Danos – ABORDA (Brasil)
  6. Plataforma Brasileira de Política de Drogas - PBPD (Brasil)
  7. Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO (Brasil)
  8. Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME (Brasil)
  9. Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos – REDUC (Brasil)
  10. Intercambios Asociación Civil (Argentina)
  11. Enfoque Territorial (Paraguay)
  12. Programa Andrés Rosario (Argentina)
  13. Asociación Costarricense para el Estudio e Intervención em Drogas – ACEID (Costa Rica)
  14. Acción Técnica Social – ATS (Colombia)
  15. Intercambios Puerto Rico (Puerto Rico)
  16. International Network of People who Use Drugs - INPUD
  17. Pares en Acción-Reacción Contra la Exclusión Social - PARCES (Colombia)
  18. Centro Cáritas de Formación para la Atención de las Farmacodependencias y Situaciones Críticas Asociadas (Mexico)
  19. Associação Brasileira Multidisciplinar sobre Drogas - ABRAMD (Brasil)
  20. Grupo Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro – GTNM/RJ (Brasil)
  21. É De Lei (Brasil)
  22. Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas – INNPD (Brasil)
  23. Coletivo Intercambiantes (Brasil)
  24. Associação Redes de Desenvolvimento da Maré (Brasil)
  25. Agência Piaget para o Desenvolvimento - APDES (Portugal)
  26. Federación Andaluza Enlace (Spain)
  27. Drug Policy Alliance – DPA (United States)
  28. Washington Office on Latin America – WOLA (United States)
  29. Stop The Drug War (United States)
  30. Canadian Drug Policy Coalition (Canada)
  31. International Centre for Science in Drug Policy – ICSDP (Canada)
  32. South Indian Harm Reduction Network – SIHRN (India)
  33. Transform Drug Policy Foundation (United Kingdom)
  34. Release (United Kingdom)
  35. Union for Improved Services, Communication and Education (Ireland)
  36. Alliance for Public Health (Ukreine)
  37. Teenswatch Community Harm Reduction (Kenia)
  38. Centro de Prevención de las Adicciones de Bariloche (Argentina)
  39. Fundación Latinoamérica Reforma (Chile)
  40. Empower India (India)
  41. Centro de Orientación e Investigación Integral - COIN (Dominican Republic)
  42. Students for Sensible Drug Policy (Jamaica)
  43. Forum Droghe (Italy)
  44. Adaptation Association (Bulgaria)
  45. Penington Institute (Australia)
  46. Fédération Bruxelloise Francophone des Institutions pour Toxicomane – FEDITO (Belgium)
  47. Association de lutte contre le sida – ALCS (Marocos)
  48. Amitiel Welfare Society (Pakistan)
  49. Global Call to Action Against Poverty - GCAP (Burundi)
  50. Areal (Slovenia)
  51. Students for Sensible Drug Policy (Australia)
  52. Association des Guides du Congo – AGC (Congo)
  53. Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies - MAPS (United States)
  54. Help Not Handcuffs (United States)
  55. Washington Heights Corner Project (United States)
  56. New York Harm Reduction Educators (United States)
  57. Community Insite (United States)
  58. Broken No More (United States)
  59. Students for Sensible Drug Policy - SSDP (United States)
  60. Elementa Consultoría en Derechos (Colombia)
  61. Canadian HIV/AIDS Legal Network (Canada)
  62. Sociedad Psiquedélica México (Mexico)
  63. Acción Andina (Bolivia)
  64. Andean Information Network - AIN (Bolivia)
  65. AFEW International (Netherlands)
  66. Equis Justicia para las Mujeres (Mexico)
  67. Puente, Investigacion y Enlace - PIE (Bolivia)
  68. Estudiantes por una Política Sensata de Drogas (Costa Rica)
  69. Fondo Lunaria Mujer (Colombia)
  70. Proyecto Punto Fijo (Puerto Rico)
  71. Asociación de Vecinos La Teja Barial (Uruguay)
  72. ReverdeSer Colectivo (Mexico)
  73. Observatorio de cultivos y cultivadores declarados ilícitos - OCCDI (Colombia)
  74. Corporación Humanas - Centro Regional de Derechos Humanos y Justicia de Género (Colombia)
  75. Justiça Global (Brasil)
  76. Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania (Brasil)
  77. Aliança Nacional LGBTI (Brasil)
  78. Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (Brasil)
  79. Coletivo Balance de Redução de Danos (Brasil)
  80. Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de Psicoativos - ABESUP (Brasil)
  81. Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – LEIPSI (Brasil)
  82. Centro de Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Drogas – CREPEIA (Brasil)
  83. Grupo Dignidade (Brasil)
  84. Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UNB Ceilândia (Brasil)
  85. Rede Nacional de Feministas Antiproibiocionistas - RENFA (Brasil)
  86. Associação Multidisciplinar de Estudos sobre a Maconha Medicinal - AMEMM (Brasil)
  87. Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Substâncias Psicoativas - GIESP/UFBA (Brasil)
  88. Fórum Intersetorial de Drogas e Direitos Humanos de São Paulo - FIDDH (Brasil)
  89. Fórum Estadual de Redução de Danos de São Paulo - FERD (Brasil)
  90. Acción Semilla (Bolivia)
  91. Dispositivo de Abordaje Territorial Rosario - DIAT (Argentina)
  92. New Parents for Addiction Treatment & Healing – New PATH (United States)
  93. Moms United to End the War on Drugs (United States)
  94. Grief Recovery After Substance Passing – GRASP (United States)
  95. Katal Center for Health, Equity, and Justice (United States)
  96. Movimento pela Legalização da Maconha – MLM (Brasil)
  97. Latin American Network of People who Use Drugs – LANPUD
  98. Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários - UNISOL (Brasil)
  99. Associação Inclui Mais (Brasil)
  100. Grupo de Estudos sobre Álcool e Outras Drogas – GEAD/UFPE (Brasil)
  101. Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial – LAPS/ENSP/Fiocruz (Brasil)
  102. Grupo de Trabalho em Saúde Mental - GTSM/EPSJV/Fiocruz (Brasil)
  103. Projeto Integrado Saúde Mental, Desinstitucionalização e Abordagens   Psicossociais (Brasil)
  104. Coletivo Pró-Frente em Defesa do SUS e da Reforma Psiquiátrica do Rio de Janeiro (Brasil)
  105. Canadian Harm Reduction Network (Canada)
  106. Associação Psicodélica do Brasil (Brasil)
  107. Women's Global March
  108. Youth Rise
  109. Foundation for Alternative Approaches to Addiction – FAAAT
  110. Asia Catalyst