Auditório da ENSP/Fiocruz durante abertura do Seminário Internacional - Cenários da Redução de Danos na América Latina
O Seminário Internacional – Cenários da Redução de Danos na América Latina aconteceu nos dias 29 e 30 de maio na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. O evento organizado pelo Programa Institucional Crack e outras Drogas (PACD) da Fiocruz contou com a participação de pesquisadores e profissionais ligados à prática da redução de danos no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Colômbia, Porto Rico e Costa Rica, teve como público trabalhadores, gestores, professores de cursos técnicos, pesquisadores e estudantes das áreas de saúde e assistência social, além de demais interessados no tema. O seminário foi transmitido para todo o mundo pela internet e, para além dos presentes no auditório lotado, também estiveram conectadas 1425 pessoas de 52 cidades em 13 diferentes países: Brasil, Áustria, El Salvador, Estados Unidos, Peru, Argentina, Canadá, Uruguai, Colômbia, Porto Rico, Países Baixos, Portugal e Arábia Saudita.
Mesa de abertura com Daniel Elia (OMS), Hugo Fagundes (Secretaria de Saúde do Rio), Domiciano Siqueira (ABORDA), Francisco Inácio (Fiocruz) e Francisco Netto (PACD).
Após apresentação da “Canción por la Unidad Latinoamericana” de Pablo Milanéz, a abertura do seminário contou com a presença de Francisco Inácio como representante da presidência da Fundação Oswaldo Cruz, Francisco Netto da coordenação executiva do Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas da Fiocruz, Daniel Elia da Organização Pan-Americana de Saúde OPAS e da Organização Mundial da Saúde (OMS), Hugo Fagundes da superintendência de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro e Domiciano Siqueira da Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA). Os convidados expuseram de maneira breve os retrocessos que as ideias do cuidado e da redução de danos estãosofrendo no campo das políticas sobre drogas em nível nacional e internacional, destacando a importância conjuntural do seminário estar ocorrendo neste momento histórico. Acontecendo, inclusive, poucos dias após o massacre policial contra usuários de drogas no centro de São Paulo.
Mesa “História e Contextos” com Denis Petuco (Brasil), Frederico González (Paraguai), Graciela Touzé (Argentina), Francisco Inácio (Brasil), Ernesto Cortés (Costa Rica), Felipe Rojas (Colômbia) e Esperanza Hernandez (Uruguai).
A primeira mesa teve como tema “História e contextos da Redução de Danos na América Latina”, foi coordenada por Denis Petuco do Grupo de Trabalho do PACD/Fiocruz e convidou para o debate Francisco Inácio (Brasil) da coordenação geral do Programa Institucional Álcool, Crack e Outras Drogas da Fiocruz, Frederico González (Paraguai) do projeto Psicoróga, Graciela Touzé (Argentina) do mestrado em Abuso de Drogas da Universidad de Buenos Aires e presidente da Asociación Intercámbios, Ernesto Cortés (Costa Rica) da Asociación Costarricense para el Estudio e Intervención en Drogas (ACEID) e professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em farmacodependência na Universidad de Costa Rica, Felipe Cuervo Rojas (Colômbia) da Corporación Acción Técnica Social (ATS) e Esperanza Hernandez (Uruguai) da área de Redução de Riscos e Danos da Junta Nacional de Drogas do Uruguai e da Red Americana de Intervención en Situaciones de Sufrimiento Social de Uruguay (RAISSS).
Redução de danos é preservar a vida respeitando o outro, preservando a autonomia do outro. - Graciela Touzé (Argentina)
Os convidados abordaram um pouco dos conceitos que norteiam a prática da redução de danos e foi definida por Touzé como o ato de “preservar a vida respeitando o outro, preservando a autonomia do outro”. A mesa também apontou para a ineficácia e desumanização da internação compulsória, prática que viola direitos humanos sistematicamente. Foi feito um resgate histórico, apresentando as primeiras intervenções da redução de danos nos anos 90 e destacando a centralidade do conceito de território para se pensar essa prática. Foi destacado a importância da prática da redução de danos ser ativa ao ir de encontro aos usuários do programa e também de fazer dialogar o debate da saúde coletiva com outros campos de discussão como a criminologia crítica e a educação popular, pensamentos fortemente identificados com as escolas latino-americanas. Discutiu-se ainda a necessária multidisciplinariedade para se investigar a redução de danos, bem como compreender que seu sucesso também depende da necessária disputa e transformação de discursos políticos, midiáticos e da opinião pública sobre a questão das drogas. Foram apresentados ainda modelos de legalização das drogas e de intervenção política através da redução de danos em diferentes países latinos.
Mesa “Interseccionalidades” com Ingrid Farias (Brasil), Dudu Ribeiro (Brasil), Florencia Forrisi (Uruguai), Jorgelina Di Lorio (Argentina) e Edna Granja (Brasil).
A tarde da segunda-feira (29) continuou com espaço para a discussão da Redução de Danos em suas interseccionalidades. Facilitado por Ingrid Farias (Brasil) da ABORDA, a mesa contou com os convidados Dudu Ribeiro (Brasil) da Rede Latinoamericana de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD) e da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD), Florencia Forrisi (Uruguai) do Ministerio de Salud Pública de Uruguay para questões de saúde LGBT, Jorgelina Di Lorio (Argentina) do Departamento de Psicologia da Universidade de Buenos Aires e membro da Asociación Intercámbios e Edna Granja (Brasil) do Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades da UFPE (GEMA). A interseccionalidade, tema central na mesa, compreende a ideia de que diversas e diferentes categorias interagem entre si em vários níveis, por isso, para entender algo em sua complexidade, é importante que debatamos ele junto às interseccionalidades que o atravessam. Uma vez que a redução de danos é uma prática que busca combater a violência enquanto método para assistir usuários de drogas, é importante reconhecer as demais violências que também atravessam esses sujeitos. A discussão da redução de danos está intimamente ligada às condições em que se encontram as pessoas que serão alcançadas pela prática, e essas pessoas estão compreendidas em um regime que às atinge de formas distintas, de acordo com seu sexo/gênero, raça/etnia, classe, religião, nacionalidade, orientação sexual ou deficiência. Todas essas determinações não agem de forma independente, mas inter-relacionadas, afetadas por todas suas interseccionalidades simultaneamente. O campo da Redução de Danos dialoga de forma muito intensa com o campo da política de drogas e, ao falar dela, precisamos identificar que no últimos cinco anos, mais de 25 mil mulheres foram presas, sendo 65% delas por tráfico de drogas. A maioria das pessoas encontradas nas cenas de uso de crack são negras e a maioria das 60 mil pessoas assassinadas por ano no Brasil também o são. O debate das opressões estruturais atravessam o campo da política de drogas e da Redução de Danos, nesse sentido, a mesa buscou apresentar elementos que complexificassem a discussão em suas interseccionalidades.
A manhã da terça (30) começou com uma mesa sobre os novos desafios da Redução de Danos na América Latina que, facilitada por Graciela Touzé (Argentina), contou com a presença de Roxana Fernandés (Uruguai) da Asociación El Abrojo e especialista em drogodependência pela Universidad Compluense de Madrid, Antonio Tesolini (Argentina) do Programa Andrés Rosário que coordenou o Dispositivo Interdisciplinario de Salud e Ingrid Farias (Brasil) da Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA). A partir da exibição do cenário em que se encontra o campo da Redução de Danos e das políticas sobre drogas em diversas localidades da América Latina e do mundo, os convidados abordaram os desafios da prática no atual momento e para o futuro. De maneira geral, colocou-se a dificuldade em se avançar diante de uma conjuntura global de retrocessos políticos onde a lógica da saúde e do cuidado tem perdido espaço para uma atuação mais repressiva e autoritária por parte das políticas públicas de governos das mais diferentes localidades. Mesmo assim, as possibilidades de resistência a partir da reinvenção da prática na ponta junto aos usuários e a partir da organização em rede para socializar as experiências positivas que o campo vem tendo dentro da América Latina, bem como as disputas de discursos e opiniões é um caminho que deve ser percorrido. Logo após, ainda na parte da manhã, deu-se sequência ao seminário com o debate sobre novas práticas de Redução de Danos que estão sendo desenvolvidas na América Latina, com o intuito de dialogar com o debate anterior que trouxe à tona os desafios que o campo enfrenta. Participaram dessa segunda mesa Felipe Rojas (Colômbia) da Corporación Acción Técnica Social (ATS), Raquel Samudio (Paraguai) da Asociación Enfoque Territorial, Rafael Torruella (Porto Rico) da Intercámbios Puerto Rico e Mariana Takahashi (Brasil) do Núcleo de Práticas de Redução de Danos do Centro de Convivência É De Lei. Os convidados apresentaram experiências de prática de redução de danos em cenas de usos das mais diversas, desde cracolândias até festas eletrônicas, e procuraram coletivizar sucessos e críticas às execuções do trabalho. Também foram lembradas as interfaces criadas com os movimentos sociais e a execução de processos politizantes junto aos usuários e suas próprias reivindicações por garantia de direitos humanos básicos.
Leitura da Carta de Manguinhos.
A última mesa do seminário tratou da Redução de Danos como Ética do Cuidado, facilitada por Denis Petuco, contou com a participação de Antônio Nery (Brasil) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Graciela Touzé (Argentina) do Mestrado em Abuso de Drogas da Universidad de Buenos Aires e presidente da Asocioación Intercámbios, Esperanza Hernandes (Uruguai) da área de Redução de Riscos e Danos da Junta Nacional de Drogas do Uruguai e da Red Americana de Intervención en Situaciones de Sufrimiento Social de Uruguay (RAISSS) e Ernesto Cortés (Costa Rica) da Asociación Costarricense para el Estudio e Intervención en Drogas (ACEID) e professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em farmacodependência na Universidad de Costa Rica. Com o intuito de aprofundar a discussão sobre os princípios que motivam e orientam o cuidado na Redução de Danos e seus valores, a mesa apresentou um caráter mais filosófico onde o conceito de ética foi desdobrado sobre a atuação prática dos redutores de danos. Valores como a preservação da vida junto à autonomia dos sujeitos, em especial usuários drogas que estão mais vulneráveis a ter seus direitos humanos violados, foram trabalhados pelos convidados. Foi reforçada a noção de que a ética na Redução de Danos precisa se opor ao paradigma de combate e repressão de usuários, substituindo essas intervenções por práticas que busquem oferecer soluções que respeitem os direitos humanos, dignidade e autonomia dos assistidos.
Presidente Nísia Trindade referenda Carta de Manguinhos após leitura pública do documento.
Por fim, uma carta produzida em oficina coletiva com os convidados do seminário foi lida e referendada pela presidente da Fiocruz Nísia Trindade Lima. A Carta de Manguinhos traz elementos da Redução de Danos em diversas localidades da América Latina, dando especial atenção para o recente massacre policial contra usuários de drogas em cracolândia no centro de São Paulo, e se posiciona em favor da saúde e do cuidado como solução possível para enfrentar as contradições colocadas para o campo de drogas hoje no Brasil e em todo o território latino.